Yoga para a alma
Em momentos de delicadeza extrema, quando a dor é profunda demais, o movimento suave do corpo, aliado às técnicas de respiração e meditação, ajuda a cicatrizar a tristez
Um telefonema no meio da madrugada roubou o sorriso de Lélia Aquino. Confundido com umsuposttraficante, seu marido havia sido assassinado por policiais em São Paulo. Com a notícia aterradora, tinha início um período de tristeza e dor profunda em que a publicitária, de 36 anos, não conseguia mais dormir – quando acontecia de pegar no sono, o descanso era interrompido por pesadelos –, e só era capaz de engolir líquidos e sopas. A saída dessa interminável noite escura só começou quando, levada por amigos e familiares, buscou a ajuda de uma terapeuta tibetana e um curso de ioga. Um dos primeiros passos foi aprender a praticar diariamente, por 40 dias, a saudação ao sol, um conjunto de ioga para a alma 12 posturas (ássanas). No início, Lélia só chorava – as cenas de dor voltavam como num filme que se repetia com a imensa saudade do companheiro –, mas algo a fazia continuar. Algum alívio começava a se insinuar. Depois de 24 meses de muita persistência, prática e tratamentos (inclusive florais de Bach para minimizar a angústia), as lembranças ainda trazem tristeza, mas já não são o foco de tudo. Hoje, Lélia se sente mais confiante no trabalho, voltou a esboçar o sorriso que lhe era característico e, ao lado do namorado, ensaia alguns planos para o futuro. “Começo a me permitir ver alguma luz”, diz.
As marcas de um trauma por certo são fortes demais para serem apagadas. Uma em cada dez pes soas não consegue ir adiante e sucumbe aos efeitos do estresse pós-traumático. Nesses casos, além dos tratamentos convencionais (medicações e psicoterapia), é preciso um outro tipo de ajuda. A ioga, com a combinação de filosofia, posturas, meditação e exercícios de respiração, tudo indica, pode libertar a mente do episódio da dor e contribuir na recuperação de vidas que sofreram perdas, violência, acidentes e catástrofes.
Uma experiência norte-americana demonstrou essa relação. Em 2013, pesquisadores da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, divulgaram que técnicas de ioga têm trazido bons resultados para veteranos das guerras do Iraque e do Afeganistão. Em um experimento que acompanhou os ex-combatentes durante uma semana de prática, notou-se a diminuição dos níveis de estresse e dos sintomas pós-traumáticos (pesadelos, problemas de sono, memórias angustiantes recorrentes e dificuldade de se conectar com as outras pessoas). Um ano depois, muitos relataram sentir como se tivessem voltado à vida depois de longo período de ausência. “Resolvi estudar o assunto devido à alta incidência de suicídios entre soldados veteranos norte-americanos. A medicação e a psicoterapia tradicionais só aliviam os sintomas de metade deles”, conta Emma Seppala, diretora associada do Centro de Pesquisa e Educação para Compaixão e Altruísmo, da Stanford University School of Medicine (Faculdade de Medicina da Universidade de Stanford). “Como esperado, a ioga acabou afetando o sistema nervoso desses pacientes, tranquilizou-os, e ajudou até alguns casos em que a medicação sozinha não estava trazendo respostas”, revela a pesquisadora, adepta da prática. Com a eficácia do programa, alguns soldados viraram instrutores do projeto Welcome Home Troops (Bem-vindas as tropas para casa), que resultou no premiado vídeo Free Mind (Mente livre), onde é possível vê-los sorrindo, falando das próprias experiências e, sim, em sessões coletivas de ioga. Na Indonésia, após o tsunami de 2004, vários pescadores não conseguiam mais se aproximar do mar para exercer seu ofício. Segundo a instrutora da instituição internacional Arte de Viver, a guru indiana Rajshree Patel, com o programa de alívio do trauma oferecido pelos voluntários da organização, aos poucos as vítimas puderam superar o sofrimento e retornar ao trabalho. O projeto inclui sudarshankryia yoga (com práticas de cerca de meia hora diária). O mesmo foi aplicado no tratamento das vítimas do furacão Katrina, que atingiu Nova Orleans em 2005.
Entendimento
Descritas por muitos como uma espécie de carimbo que fica para sempre no corpo e na mente, as lembranças dolorosas insistem em vir à tona mesmo quando se faz um tremendo esforço para esquecê-las e seguir adiante. A instrutora Rajshree, que visitou São Paulo em dezembro, explica que “o trauma é sempre ver apenas a mancha em uma roupa branca” e o incômodo com a lembrança só reforça esse padrão, tornando o sofrimento cada vez maior. “O que a ioga faz é trazer a consciência de que você não é só a mancha. Ela ajuda a ver a roupa toda novamente. A respiração e a meditação são como o processo de lavagem e secagem dessa roupa, trazendo a sensação de limpeza e frescor para a vida.”
Esses efeitos positivos também estão relacionados à filosofia que, segundo o Bhagavad Gita (livro indiano sagrado do século 4 a.C.), estimula o equilíbrio da mente (desapego de emoções negativas com perseverança), a habilidade na ação (manter o foco para desenvolver virtudes) e o rompimento do elo com a dor (libertando-se do sofrimento causado pelo corpo e pela mente).
O psiquiatra Marcelo Feijó, especialista do Programa de Atendimento a Vítimas de Violência e Estresse da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explica que, após um evento extremo, a pessoa se sente em permanente estado de alerta, como se corresse sempre o mesmo risco, ao relembrar as emoções e cenas. “As reações variam para cada indivíduo de acordo com o seu organismo, estrutura e histórico de vida, mas uma experiência negativa desse porte pode provocar uma descarga constante de adrenalina e cortisol”, diz. Em grande quantidade, esses hormônios acabam prejudicando a imunidade, o metabolismo e podem levar a lesões cerebrais. Numa livre comparação, seria como criar um machucado da dor sentida. Ao promover maior conexão entre corpo, mente e alma, por meio das posturas, da meditação e respiração, a ioga seria uma forma alternativa de reparar o dano, a ferida emocional. “A prática reduz o cortisol, diminui o cansaço e melhora o sono”, diz Marcelo Feijó. Também regula os batimentos cardíacos e aumenta a capacidade respiratória. “Orientadas por equipes multidisciplinares, que incluem o tratamento médico tradicional, as vítimas começam a melhorar em torno de seis meses a um ano de prática”, estima o especialista da Unifesp.
Renascimento
Toda vez que um evento inesperado muito estressante rompe a noção de segurança de uma pessoa, ela se torna vulnerável e impotente. Não é preciso ser uma catástrofe mundial para isso. Às vezes, uma tristeza particular como uma separação afetiva ou uma demissão pode detonar o processo. Foi o caso do advogado Renato Oliveira, de 32 anos. Ao momento emocional turbulento no trabalho, juntou-se o susto do rompimento amoroso e ele “perdeu o chão”. O estado de choque preocupava amigos e familiares, que temiam até por sua integridade física e o obrigaram a buscar tratamento e ajuda. “Comecei a achar que tudo estava errado: profissão, família, amizades e minha única vontade era jogar tudo para o alto”, diz.
Por indicação de uma amiga, depois de muita relutância, acabou buscando o caminho da ioga, que aos poucos foi dando suporte para que ele superasse o conflito. “Senti melhoras a partir do quarto dia de prática, quando de um jeito meio sutil ainda passei a sofrer um pouco menos. A minha visão das coisas mudou: antes, achava que todos os problemas eram causados pelos outros, pelo externo, mas percebi que a vida pode ser mais leve e tranquila com base no nosso jeito de lidar com os problemas”, afirma. Era como se o advogado tivesse que sentir a maior dor do mundo, bater com os pés no fundo do poço da autoestima, para, então, ter certeza de que nada mais poderia abalá-lo de maneira tão forte. Além de ser feliz seguindo a mesma carreira, Renato afirma ter muito mais disposição para trabalhar e hoje é ainda instrutor voluntário da prática que o ajudou a reerguer-se, tamanha a crença de que a ioga muda o corpo e a mente. “Passei por outros problemas e rompimentos amorosos depois, mas de uma forma muito mais madura e sem me deixar abalar tanto, porque faz parte da vida”, afirma ele, que ainda contabiliza menos crises de sinusite e resfriados do que anos atrás. “Não se apaga a lembrança de um trauma, mas é possível elaborar o que aconteceu. Superar o drama traz a possibilidade de novas perspectivas para a vida”, observa o médico Marcelo Feijó.
Para a bióloga Elisa H. Kozasa, pesquisadora do departamento de psicobiologia da Unifesp e do Instituto do Cérebro do Hospital Albert Einstein, ambos em São Paulo, faltam mais estudos relacionando a ioga ao tratamento específico do estresse pós-traumático, mas sabe-se que os ássanas ajudam a desenvolver o foco, a concentração, e favorecem o relaxamento. “A pessoa aprende novos referenciais e passa a ter um estado de gentileza com o próprio corpo e a mente”, diz ela. É um complemento ao tratamento médico e psicológico. “Em muitos casos, a medicação é importante, pelo menos no início, porque a pessoa está tão abalada que não tem condições nem de começar a ioga, já que não consegue fazer o básico como comer e dormir adequadamente”, pondera Elisa. É o médico quem melhor poderá avaliar o momento correto de usar a ioga como coadjuvante do tratamento.
A especialista frisa ainda que a ioga não é mágica e que a prática tem melhor efeito com disciplina e regularidade, segundo as pesquisas. “A redução de sintomas de estresse bem como a da ansiedade e a melhora da atenção é observada em muitos estudos após cerca de oito semanas de treinamento diário”, diz Elisa.
O poder renovador da ioga nos casos de perdas, talvez explique por que essa prática é associada entre os hindus ao deus Shiva, que tinha a habilidade de destruir para depois reerguer algo novo. “Ganhamos mais energia e entusiasmo, desvinculamos os padrões emocionais do evento, expelimos as toxinas físicas e emocionais e nos tornamos conscientes de cada momento, dando a oportunidade de superar o passado e criar uma nova realidade com mais clareza, energia, paz e felicidade”, afirma Rajshree. Palavras de quem pratica há 30 anos, sempre com o mesmo sorriso no rosto.
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